quarta-feira, julho 12, 2006

CHEGASTE-ME EM SONHOS

Chegaste-me em sonhos. Nem era uma praia,
uma ilha deserta, uma gruta pré-histórica,
mas dei por mim a escrever-te cartas de amor
com estalactites, como se banhasse o chão
a derreter-me a alma com o seu frio líquido
e o seu ridículo fugaz, desproporcionado na solidão,
mas ridículas não são as cartas, apenas as palavras.

Via-te como uma deusa, uma desconhecida
filha de santa, pastora dos rebanhos sagrados
da montanha, amante da poeira de livros antigos
em homenagem à passagem do tempo, provadora
de líquens e cultivadora de plânctons, observadora
de peixes em movimento, mascarados de adjectivos,
nadando fora dos aquários ainda sem destino.

Embebido na angústia, à luz frágil de uma fogueira,
medito em coisas únicas, em quietos sobressaltos
de sombras espalhando-se no silêncio das paredes
e como foi bom apareceres por aqui, no descampado
das páginas por encher de ideias e de folhas verdes,
como as das árvores mais altas, usadas para desanuviar
a chuva nas pálpebras dos seres tristes. Anjos acabrunhados
e olvidados da sua missão obrigatória, de se render
aos benéficos percursos, desenhados por novas mãos
apaixonadas pelo teu corpo, onde não se vislumbra
até onde pode ir o sofrimento. É uma poção envenenada,
impura, a juntar na dor as carícias, como numa tempestade
se procuram os sobreviventes temerosos da morte,
e a colocá-los em altares da eternidade, na escuridão.

Olho-te nos olhos e encegueiro. Confesso-te
a impossibilidade de manter a imagem precisa
que me atormenta no centro destas palpitações
a invadir-me a memória. Mas condescendo, aceito
o preenchimento de todo este vazio, deste nada
cristalizado em versos, com o eco do teu chamado,
ciciado nas noites infinitas, obrigando-se a partir
em permanente viagem. Não conheço, ou já esqueci,
o mar de sentimentos que antes me oprimia o peito.

O dia, pressinto-o agora, fica muito longe de mim,
construído com o vão arfar de um pesadelo alado,
sepultado em ruínas pelo matagal de um existir
a que no eco das distâncias recuso revelar um fim.
Para relembrar-te deito-me com um monte de pedras
e abraço-o, acordando de madrugada, clamando por ti.


José António Gonçalves(inédito.02.11.04)

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