quarta-feira, fevereiro 04, 2009

CRÓNICA DAS PALAVRAS : Baptista-Bastos

Escritor e jornalista - b.bastos@netcabo.pt

[ Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade. Mas também escritores e jornalistas as debilitam e as entregam às suas pessoais negligências. Não é, somente, uma questão de gramática e de estilo; mas é, também, uma questão de gramática e de estilo. Há escritores e jornalistas que o não são à força de o querer ser. A confusão instalou-se, com a cumplicidade leviana de uma crítica pedânea e de um noticiário predisposto a perdoar a mediocridade e a fraude.

As palavras possuem cores secretas, odores subtis, densidades ignoradas. O discurso político conduz-nos ao nojo da frase. Pessoalmente, tento limpar o reiterado registo da aldrabice e da ignorância com a releitura dos nossos clássicos. Recomendo o paliativo. Eis-me às voltas com as Viagens na Minha Terra. Garrett não era, propriamente, uma flor imaculada. Mas foi um mestre inigualável na arte da escrita. Lembro-o porque, a seguir, revisitei o terceiro volume de As Farpas, onde Ramalho reproduz uma conversa com Herculano. O historiador retratou assim o seu companheiro das lutas liberais: "Por cem ou 200 moedas, num dia de apuro, o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quiserem, menos de pôr num papel, a troco de todo o ouro do mundo, uma linha mal escrita.

"Desaprendeu-se (se é que, vez alguma, foi seriamente aprendido) o vocabulário da língua. Lê-se o por aí publicado e a pobreza lexical chega a ser confrangedora. Não se trata de simplicidade; antes, desconhecimento, incultura, ausência de estudo. "Foge de palavras velhas; mas não receies o uso de palavras antigas." Recomendava Garrett. Palavras velhas, travestidas de "modernidade", são, por exemplo: expectável, incontornável, enfatizar, implementar, recorrente, elencar, factível, plafonamento, exequível, checar, fracturante, imperdível, abrangente, atempadamente, alavancar, empolamento - e há mais.

Reconheço o meu verdete por certas palavras e expressões. Não é embirração de caturra, nem rabugice de um recta-pronúncia. Será o gosto da palavra, a alegria de com elas trabalhar há longuíssimos anos, a circunstância de ser um leitor com fôlego, o facto de ter tido professores como o gramático e linguista Emílio Menezes, goês paciente, sábio e afável; e de haver frequentado alguns dos maiores escritores do século passado, para os quais o acto de escrever representava moral em acção.
Lembro, com emoção e orgulho, Aquilino, José Gomes Ferreira, Miguéis, Sena, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Abelaira.

Esta crónica foi, também, um pretexto para os lembrar. ]

Publicado no DN on line

1 comentário:

Anónimo disse...

"As palavras passam intactas, verdadeiras, naturais, puras. Nada lhes amplia ou suaviza, nada lhes acrescenta ou retira.
São como um leito encoberto, profundo e triste, por onde o rio imenso, cintilante e alegre segue.
As palavras são águas cristalinas e diáfanas. São a mais simples das fórmulas químicas, composta por pequenos átomos perceptíveis que são as letras.
Os sons resultam do percurso espontâneo deste mar da vida, dos ruídos animados dos salpicos e gotículas que embatem nas rochas que são os pensamentos.
Este mar interminável, de palavras que correm e escorrem através da notícia,numa página vazia, num ecrã em branco, numa lousa negra, num discurso cheio…
E assim, o mar deste rio de palavras é todo o mundo e todo o mundo que cria, em todo o mundo que se vive, todos os dias".

Texto adaptado de quem não joga com a honra das palavras. Abril 07

Sim, porque a palavra deixou de ter honra, bem como quem as profere, saiem sem contexto, sem estética, na mentira constante de quem as diz, banalizou-se de tal maneira que eu me atrevo num tom incisivo a dizer estar farta das "palavras prostitutas" aquelas que todos usam para os fins que mais lhes convém. Palavras tantas vezes usadas extropiadas do seu "verdadeiro sentido", que se jogam no riso, no divertimento, do próximo. As palavras podem ser salvadoras, sem palavras não somos nada, no tempo certo podem ser o aconchego de muitos, o alento, a saciedade. Nunca concordei tanto com uma crónica de Baptista Bastos.
Sinto-me privilegiada por fazer parte de uma geração onde se liam os grandes escritores, onde os "velhinhos" professores nos ensinavam as bases fundamentais da palavra, escrita e falada.
E também recordo, com todo o prazer Aquilino, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira.

Tsr
bjs